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Geopolítica latino-americana

Fuente: Arquivo Pessoal de Marini depositado no Programa de Estudos de América Latina e Caribe-Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ca. 1985.


  1. A geopolítica, isto é, a política internacional pensada a partir de determinações geográficas, é uma consequência da ação de três fatores históricos: a) a existência de Estados nacionais surgidos da divisão da sociedade em classes e das relações de dominação e subordinação que entre elas se estabelece; b) o desenvolvimento desigual de economias nacionais, propiciado pela expansão mundial do capitalismo, e das formas de exploração que isso cria, e c) a formulação de projetos de dominação por parte de um Estado em relação aos outros. Por isto mesmo, a geopolítica informa as relações internacionais do mundo capitalista desde a sua origem e encontra sua formulação ideológica plena, enquanto teoria e doutrina, na Alemanha do século XIX, onde um desenvolvimento capitalista tardio pôs o país interessado em condições desfavoráveis no plano internacional, em relação às nações que o haviam precedido.
  2. No curso da segunda guerra mundial, a geopolítica converteu-se num dos princípios reitores da política exterior norte-americana. Içado à posição de potência capitalista hegemônica e disfrutando [sic] no plano internacional de uma posição só comparável à da Inglaterra entre 1860 e 1880, Estados Unidos recorre a ela, ao findar a guerra, para conformar sua visão do mundo e traçar sua estratégia de dominação mundial. Essa visão destaca, em primeiro plano, a existência de dois blocos políticos conflitantes, fundados em sistemas econômicos antagônicos, liderados respectivamente por Estados Unidos e a União Soviética, que tendem à dominação exclusiva e supõem, por isso mesmo, cada um de seu lado, o aniquilamento do outro. O fato de que formule sua diplomacia a partir de uma perspectiva militar não só indica o alto grau de agressividade do imperialismo norte-americano, como também determina seu processo de desdobramento no tempo, levando essa diplomacia, em função da correlação de forças, à guerra fria, depois à distensão e, finalmente, à política de paz com força que a caracteriza hoje.
  3. A geopolítica chega à América Latina na esteira da crescente influência que exercem os Estados Unidos sobre uma rama especial dos Estados da região –as Forças Armadas– a partir de acordos bilaterais de cooperação técnica e de programas de formação de quadros, os quais se desenvolvem a partir da segunda guerra e se generalizam nos anos 60. Nesse momento, a radicalização dos movimentos de liberação nacional que ocorrem no Terceiro Mundo e o apoio que começa a dar-lhes a União Soviética levam à revisão da estratégia norte-americana: esta passa a um segundo plano a ideia de uma confrontação direta com a URSS e põe maior ênfase na disputa palmo a palmo de zonas de influência. A revisão norte-americana, que começa a gestar-se em círculos militares e civis desde o fim da guerra da Coreia, impõe-se ao assumir o governo de John F. Kennedy. Ela implica a militarização total da diplomacia norte-americana, que, agora, não só constrói sua visão das relações internacionais a partir de uma perspectiva militar, mas também estende o enfoque militar às relações políticas internas dos diferentes países, através da doutrina da contrainsurgência.
  4. Surgida de elaborações doutrinárias dos militares ingleses e franceses em suas guerras coloniais, no após-guerra, a doutrina da contrainsurgência é, basicamente, isso: um enfoque militar da política. Qualquer movimento de oposição à dominação vigente é visto, nessa perspectiva, como ameaça a ser suprimida mediante o uso da força. O jogo político, a dialética governo-oposição, a alternância de forças no poder ficam, pois, excluídas e, em seu lugar, a partir do conceito de inimigo interno, a política é substituída pela guerra. No contexto da geopolítica norte-americana, esse inimigo interno é simples ponta de lança nacional do bloco de forças antagônico e os processos políticos nos países do Terceiro Mundo se reduzem a guerras internas, que não são mais que aspectos da guerra total que, no plano mundial, os Estados Unidos travam contra a União Soviética.
  5. Se, nos Estados Unidos, a contrainsurgência é um produto da geopolítica, na América Latina ocorre o inverso: é a adoção da doutrina da contrainsurgência pelos militares e, logo, pela classe dominante que leva a geopolítica a ocupar lugar de destaque na política internacional dos Estados da região e nos seus projetos de fortalecimento nacional. É verdade que, desde sua formação e pelas razões gerais que indiquei antes, as quais estendem sua validez ao período colonial, as relações entre os países da América Latina sofriam a influência de determinações geopolíticas. Isso foi sobretudo certo para aqueles que apresentaram um desenvolvimento estatal mais precoce, em particular o Chile, o Brasil e a Argentina, chegando a ter importância decisiva para os dois últimos, por fatores históricos, econômicos e culturais. Sob a vigência da contrainsurgência, porém, o fenômeno se acusa e dá lugar à instituição da doutrina geopolítica como base da sua política exterior. Deve-se isso, sem dúvida, ao fato de que, na aplicação de sua nova estratégia internacional, os Estados Unidos propiciaram e apoiaram a substituição de regimes democrático-liberais por ditaduras militares na maioria dos países da região. Mas deve-se também a que, situadas à cabeça do Estado, as Forças Armadas arrogaram-se o direito de fixar e preservar os interesses nacionais –entendidos como segurança nacional– e formularam projetos próprios que, sendo postos em termos militares, se constituíam por isso mesmo em projetos de potência. Observemos que, segundo a definição de um dos teóricos da contrainsurgência, Robert McNamara, a essência da segurança é o desenvolvimento econômico –o que, num país capitalista, quer dizer acumulação de capital. Compreende-se assim que as ditaduras militares elevassem os interesses da burguesia à categoria de interesses nacionais e que sua política de potência promovesse no plano internacional esses mesmos interesses.
  6. Surge daí o conceito de subimperialismo. Formulado no contexto da teoria da dependência e referido à visão que esta tinha da integração imperialista mundial, ele foi utilizado por mim e outros autores, entre os quais Andre Gunder Frank, Samir Amin, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra, mas também criticado ao interior dessa corrente, principalmente por Fernando Henrique Cardoso; por influência dessa postura crítica, mais de um autor brasileiro preferiu considerar o desenvolvimento recente do país em termos de simples expansionismo. A força do fenômeno a que o conceito de subimperialismo alude levou a que as Nações Unidas, privilegiando sua dimensão estritamente econômica, acunhassem e difundissem, através de seus órgãos técnicos, o conceito de novos países industrializados, cujo uso se generalizou na segunda metade dos 70; nessa mesma linha, alguns autores marxistas trabalharam o tema, tendendo a suprimir as diferenças qualitativas entre imperialismo e subimperialismo, particularmente, no México, Enrique Semo e Jorge Castañeda. Na teoria da política internacional, o fenômeno conferiu importância ao conceito de potência média, que foi por alguns autores contraposto ao de subimperialismo e que se incorporou inclusive ao vocabulário oficial de certos Estados, notavelmente o México e o Brasil. Observemos, finalmente, que, numa perspectiva estritamente geopolítica, que trabalhou com o conceito de satélite privilegiado, o tema foi tratado por Vívian Trías, nos anos 60, assim como Paulo Schilling, Rodolfo Puiggrós, Gregorio Selser e outros. O golpe de 1973 no Chile reacendeu o interesse sobre este aspecto, datando de então os estudos mais detalhados feitos pela esquerda sobre a doutrina geopolítica e suas aplicações na América Latina.
  7. O conceito de subimperialismo define-se a partir de duas vertentes –econômica e política. Em relação à primeira, ele parte do processo de expansão e internacionalização do capital, na linha indicada por Marx, segundo a qual um centro capitalista (isto é, um centro de acumulação de capital) expande-se, gerando pontos de circulação, que progressivamente se convertem em núcleos de acumulação também, ainda que subordinados (correspondentes ao que a teoria da dependência chamou de capitalismos dependentes). Esses núcleos não só articulam sua circulação com aquela que cria o centro capitalista inicial (através de fluxos de mercadorias e capitais), mas também, a certo ponto de seu desenvolvimento, dão origem a uma circulação relativamente autônoma, que choca, se contradiz –em maior ou menor grau– com a que parte do centro inicial. A que ponto do seu desenvolvimento? Naquele em que o capital esgota, em termos relativos, o mercado interno (tanto como consumidor de bens e serviços como produtor de matérias primas), vendo-se forçado a mover-se em direção ao mercado externo para assegurar sua reprodução; ou o faz simplesmente em busca dos lucros extraordinários que –por razões que não vêm aqui ao caso– o comércio exterior possibilita. No século XIX, quando o sistema capitalista mundial encontrava-se em fase de crescimento extensivo, era regido por um centro capitalista de débil base produtiva e não criara ainda grandes desníveis econômicos e militares entre seus componentes, esse momento ensejou a formação de novos centros capitalistas e deu lugar a uma competição exacerbada e violenta, que se resolveu através da guerra. No nosso tempo, de crescimento intensivo do sistema capitalista, de consolidação de uma dada distribuição de poder em seu interior, e de grandes desníveis de forças entre países, as contradições dos núcleos dependentes com os centros é menor, na medida em que são mais fortes os laços que os ligam em termos de circulação e também porque, objetivamente, têm menos capacidade competitiva que os centros emergentes do século XIX. Eles buscam, portanto, criar uma esfera de circulação externa, mas o fazem dentro da órbita estabelecida pelos centros dominantes; em outros termos, criam uma circulação relativamente autônoma, mas, por isso mesmo, relativamente subordinada.
  8. Ainda na perspectiva da análise econômica, o conceito de subimperialismo liga o momento de extroversão, de saída relativamente autônoma ao exterior, com uma fase do processo interno de acumulação de capital, em seu duplo movimento: enquanto concentração (crescimento real dos capitais individuais e do capital social total) e enquanto centralização (crescimento de certos capitais individuais à custa da redistribuição do capital social total). Ambos movimentos da acumulação conduzem à formação de monopólios e à fusão do capital bancário e industrial que dá lugar ao capital financeiro, segundo a análise leninista clássica. Esse fenômeno, que implica também a monopolização da ciência e da tecnologia, aguça o antagonismo implícito na formação dos preços de produção (que pressupõem uma redistribuição da mais-valia social), intensifica a criação de mais-valia extraordinária e conduz à exacerbação dos lucros extraordinários; em suma, leva ao paroxismo o processo de competição, pressiona a taxa média de lucro em direção à baixa e põe como questão de sobrevivência a saída ao exterior. Nas condições atuais do capitalismo internacional, que indiquei antes, essa saída, como vimos, só pode dar-se de forma subordinada. O subimperialismo, neste sentido, é o capitalismo dependente chegado à etapa dos monopólios e do capital financeiro.
  9. Em sua vertente política, o subimperialismo parte da consideração do Estado como fator direto de acumulação e instrumento de regulação do capital, de tal maneira que a política estatal determina-se a partir do movimento real do capital e dos interesses da classe que o representa a burguesia. Enquanto órgão da classe em seu conjunto, o Estado goza de uma autonomia relativa frente a ela e de uma autonomia quase absoluta ante cada um dos grupos que a compõem. Essa autonomia se acentua na medida em que ele é o instrumento por excelência que utilizam as distintas burguesias nacionais em seu inter-relacionamento. Dadas as relações de dominação e subordinação que, por sua vez, estabelecem, dentro da mesma burguesia, suas camadas e frações, o Estado –sendo o instrumento de toda a classe– o é com mais razão daquelas que ali se erigem como dominantes. Na expressão de Bukarin, o capital aglomera-se com o Estado, estabelece com ele vínculos orgânicos e converte o seu próprio movimento de expansão em expansão estatal, em ação do Estado nacional fora das suas fronteiras. Esse movimento, ao dar-se no âmbito da superestrutura, é algo consciente, capaz de expressar-se em formulações ideológicas e doutrinárias, de plasmar-se em metas e projetos, de traçar linhas de ação estratégicas e táticas. Visto desde este ângulo, o subimperialismo é doutrina, projeto, é política enfim.
  10. É essa riqueza e complexidade do fenômeno ao qual aponta o conceito de subimperialismo que fez dele algo tão controvertido e deu lugar a tantos outros conceitos, referidos geralmente a este ou aquele aspecto específico da questão. Por outra parte, sua inclusão num quadro de análise das relações internacionais força a abandonar os esquemas simplistas que se aplicam a elas, baseados no dualismo e numa visão estática, como os que se expressam através das dicotomias leste-oeste, norte-sul, centro-periferia. É necessário romper com esses esquemas para que as relações internacionais apareçam como processo e como campo de forças cambiantes, como uma teia intrincada que, se hierarquizada e formalizada, se configura menos em forma circular que em forma piramidal. No vértice, o centro imperialista com as economias nacionais que o compõem, na seção seguinte os capitalismos emergentes que tendem ao subimperialismo e assim por diante. Agitada por incessantes movimentos, essa figura está sempre em vias de transformar-se, ameaçando mais de um país imperialista com a degradação a um nível inferior, acenando aos capitalismos emergentes com a possibilidade [de] novos patamares e incentivando-os a lutar por sua entrada no círculo imperialista.
  11. Este último caso é, sem dúvida, o do Brasil, o caso mais paradigmático em relação ao fenômeno aqui considerado. Convém assinalar que o subimperialismo brasileiro não pode ser visto, como se pretende às vezes, como rótulo aplicado a uma realidade estática. A vinte anos de sua emergência, ele tem já a sua história, desde o momento em que se formulou como projeto de dominação subordinada pela Escola Superior de Guerra até hoje, quando se converteu em elemento constitutivo da ideologia burguesa e em política prática do Estado; desde o momento em que pretendeu fazer realmente do país um “satélite privilegiado” dos Estados Unidos até hoje, quando olha esse país com crescente desconfiança e procura ampliar sua margem de manobra em relação a ele; desde o momento, enfim, em que sonhou com praticar anexações mais ou menos disfarçadas e levou a cabo intervenções quase abertas na política interna de seus vizinhos até hoje, quando privilegia a expansão econômica (mesmo que através da venda de armas) e a penetração cultural (embora se trate da exportação de telenovelas) como meios principais de ação.
  12. O subimperialismo brasileiro não tem apenas uma história, conta também com uma obra a meio terminar. Rigidamente apegada aos princípios da geopolítica, a diplomacia brasileira concebeu na América Latina duas áreas prioritárias de ação –a da bacia do Prata e a da bacia amazônica– e buscou vincular os países correspondentes a cada uma mediante tratados coletivos, destinados a promover sua integração à economia nacional. Além-mar, lançou-se em direção à África, disposta a intermediar a dominação imperialista naquele continente. Seu projeto mais caro é o de converter o Brasil em potência hegemônica no Atlântico Sul, tendo chegado mesmo em certo momento a sonhar com uma Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS), projeto que a vida se encarregou de inviabilizar. A partir de meados dos 70, o subimperialismo brasileiro perde o caráter espetacular e até fanfarrão que adotara até então, e o faz seja pela pressão dos fatores internos que encaminhavam o país à redemocratização, seja pela necessidade de revisar sua estratégia internacional. Essa necessidade colocou-se a partir do momento em que a possibilidade de uma aliança vantajosa com Estados Unidos –que o acordo Kissinger-Geisel de 1976 quase tornou realidade– é substituída pela tensão imposta pelo governo Carter às relações entre os dois países e, logo, pela pressão aberta de Reagan por restabelecer a plena hegemonia norte-americana na zona. Desde então, o Itamarati, convertido em instrumento de promoção dos interesses da grande burguesia industrial e financeira no exterior, e atuando dentro dos marcos impostos pelo Conselho de Segurança Nacional, buscará abrir novos espaços para o projeto de potência traçado, modificando sua posição hostil aos países socialistas, reaproximando-se dos países do Terceiro Mundo e tentando abrir brechas dentro do próprio bloco imperialista.
  13. Se é verdade que o subimperialismo brasileiro constitui o melhor exemplo da prática de uma diplomacia centrada na geopolítica, isto não significa que ele seja uma exceção na América Latina. Muitos outros países praticam políticas semelhantes, destacando-se a Argentina, que, desde 1966, com suas intervenções em países vizinhos e seus esforços por disputar a Brasil a hegemonia no Atlântico Sul, dá uma réplica frontal à política do Itamarati. O Chile, paralelamente a seus encontrões com o Peru, procura primeiro criar uma área própria de influência, através do Pacto Andino, e vai depois quase à guerra com a Argentina, por sua insistência em assegurar-se uma posição no Atlântico Sul. Convém observar que a ditadura militar chilena vulnerou gravemente o acordo tácito de Argentina e Brasil no sentido de garantir autonomia relativa a essa área, quando se aliou com a Inglaterra, interessada em conservar a influência que sempre teve ali –o que lograria plenamente com o resultado da guerra das Malvinas. Mais ao norte, finalmente, as pretensões encontradas de hegemonia subordinada do México e da Venezuela –e, em certa medida, da Colômbia– na América Central acabariam dando o fruto feliz do Grupo de Contadora, uma vez que os adversários viram-se forçados a unir-se para fazer frente à ameaça da intervenção militar norte-americana na área.
  14. A impressão um pouco fantástica que transmite o jogo geopolítico na América Latina não é produto da análise, mas dos fatos. Ela vem da percepção de que há processos de reestruturação atualmente em marcha, os quais, operando em escala mundial, convertem em brinquedo de criança as armações particulares dos governos latino-americanos. Desde a década passada, a economia capitalista mundial entrou numa crise profunda, que ameaça com transformar radicalmente o quadro de referências, o cenário maior em que se move a América Latina. São vários os analistas que, constatando o declínio relativo do poderio norte-americano, assim como a necessidade que tem o centro do sistema de racionalizar-se, suprimindo a competição excessiva, constatam a afirmação progressiva da política chamada “do lado do Pacífico”, isto é, de aliança entre os Estados Unidos e o Japão em detrimento da Europa. Isto, que se esboçara já com a primeira crise do petróleo –verdadeiro golpe desferido contra a economia europeia– foi-se desenvolvendo depois por outros caminhos que compreendem coisas tão diversas como uma eventual aliança com a China (hoje, menos provável) e os acordos entre firmas norte-americanas e japonesas em ramas como a automobilística e a informática. Paralelamente, iniciava-se um processo de aproximação e cooperação econômica entre a Europa ocidental e o bloco soviético, destacando-se aí o episódio do gasoduto transiberiano. Sobre esse movimento que realiza Europa cabem duas observações: primeira, que ele não inclui a Inglaterra, que joga mais do lado norte-americano que europeu, fato que, se bem considerado pelos militares argentinos, lhes teria evitado, ao lançar-se contra ela, alimentar esperanças de que os Estados Unidos se alinhassem com eles na guerra das Malvinas; segunda, que, buscando armas para fazer frente à pressão norte-americana, a Europa, e em particular a França, maneja a possibilidade de alianças no Terceiro Mundo e constitui o elo fraco da corrente imperialista em questões de transcendência para este, como, por exemplo, a da dívida externa.
  15. A crise mundial e as tendências de reestruturação internacional que dela surgem afetam a América Latina de outra maneira. Durante a segunda metade dos 60 e no curso da década passada, a violenta competição interimperialista abriu à região ampla margem de manobra e alentou em muitos de seus governos projetos de potência. A década de 1980 marchou noutra direção, ao empenharem-se Estados Unidos em reconquistar o terreno perdido, seja de maneira direta, seja brandindo o chicote do Fundo Monetário Internacional. Hoje, América Latina está confrontada a um projeto de reestruturação que exige a reconversão produtiva de suas economias, de modo a assegurar sua inserção plena na nova divisão internacional do trabalho que está em processo. Essa reconversão –que dá ênfase às exportações e à homogeneização tecnológica segundo os parâmetros internacionais– implica a destruição de parte de seu capital social, particularmente na indústria manufatureira. Isto afetou já profundamente países que se haviam industrializado sobre bases frágeis, como Chile e Uruguai, mas também um país que contava com base mais sólida, como a Argentina. Por outro lado, para aqueles que, por sua infraestrutura econômica, população e recursos, dispõem de melhores condições para continuar seu desenvolvimento industrial, como Brasil e México, a reestruturação parece reservar destinos diferentes: enquanto o primeiro aprofunda e consolida, durante a crise, os alicerces da sua economia nacional, o segundo reorienta a sua para o mercado norte-americano, deixando aberta a possibilidade de que se concretize o projeto de Reagan no sentido de formar com ele e Canadá um mercado comum. Para todos os países, venham eles a ser agrícolas, mineiros ou industriais, predominantemente, o projeto global de reestruturação lhes exige incorporar-se diretamente à economia internacional, à maneira do que ocorria no período da economia exportadora do século XIX. Fazê-lo, significa renunciar a constituir a América Latina em entidade definida no plano mundial.
  16. Reside aí, sem dúvida, a razão pela qual os problemas de ordem geopolítica que dividiram a região na década passada tenham entrado em declínio e que a dinâmica regional se tenha orientado, nesta década, a iniciativas bilaterais ou multilaterais enfocadas em direção ao centro do sistema e, em particular, a Estados Unidos. A princípios dos 80, assistiu-se à revitalização do Sistema Econômico Latino-Americano (SELA) –e, na suas águas, da CEPAL– que procurava coordenar as reações latino-americanas ao projeto de reestruturação. Os resultados não foram brilhantes, como pouco brilhantes têm sido também os frutos de esforços de coordenação mais específicos, como o do Grupo de Cartagena, relativo à negociação da dívida externa regional. As tentativas de levar a foros mais amplos as reivindicações econômicas latino-americanas não têm tido também sucesso; é o que se viu no plano do chamado “diálogo norte-sul” e, mais ainda, no “sul-sul”, ficando como último gesto significativo da América Latina nesse terreno a frustrada reunião de Cancun, em 1980. No plano político, a OEA entrou em crise, depois do triunfo da revolução nicaraguense, sem que ninguém se empenhasse realmente em resgatá-la. O Grupo de Contadora, a iniciativa mais notável do período, passa por seu pior momento e, não tendo recebido dos países mais fortes do hemisfério sul mais do que um apoio retórico, ameaça com dissolver-se.
  17. A falência dos governos latino-americanos para encontrar fórmulas e meios comuns de ação se contrapõe a uma definição cada vez mais precisa da estratégia norte-americana na região, tendente a incorporá-la radicalmente à sua esfera direta de dominação, isto é, de centro-americanizá-la. Assim, no plano militar, Estados Unidos, depois de apoiar Inglaterra contra Argentina na guerra das Malvinas, deu luz verde a esta última para converter suas Falklands em poderosa base militar da OTAN –o que significa o dobre de sinos para os sonhos de uma zona político-militar dotada de relativa autonomia no Atlântico Sul, que alimentavam Brasil e Argentina. Pelo lado do Pacífico, os Estados Unidos obtiveram já da ditadura chilena a cessão da ilha de Páscoa para a instalação de uma base militar e negociam acordos semelhantes com outros países. Rompem, assim, o pacto tácito contraído com América do Sul, e em especial com o Brasil, a princípios do século, quando iniciaram sua luta pela hegemonia na região, o qual implicava para esta uma política de hands-off. Dentro da linha traçada atualmente, o imperialismo norte-americano quer estender sua área de segurança a toda a América Latina, atropelando a soberania de seus Estados, e se orienta no sentido de negar qualquer pretensão de autonomia, ao nível que for, por parte destes.
  18. No plano econômico, não tem sido diferente o comportamento dos Estados Unidos. Uma vez que, movidas por seus projetos nacionais e suas pretensões de autonomia, as Forças Armadas latino-americanas mostraram ser aliados pouco confiáveis –ou, pelo menos, pouco controláveis–, o governo norte-americano distanciou-se delas e, de acordo também com seus interesses mais gerais, passou a favorecer o traspasso do controle estatal às burguesias locais. Isso coincidiu com o abandono dos órgãos político-militares (como o Pentágono, o Departamento de Estado, a CIA) como instrumentos principais de ação na região, em favor do Departamento de Comércio, das comissões econômicas do Congresso, do Tesouro, do Banco Central e, especialmente, do FMI. Em 1982, os dois países que ainda se mantinham recalcitrantes –México e Brasil– curvaram a espinha ante este último. De lá para cá, impôs-se o manejo da política econômica dos países latino-americanos por mãos situadas em Washington, dentro de um esquema de relações estritamente bilateral. A insubordinação argentina de 1984, ao assumir Alfonsín, as pressões de Cuba, as resistências surgidas recentemente no Brasil e a ameaça de um colapso econômico do México levaram, semanas atrás, ao lançamento por Estados Unidos do Plano Baker, que se propõe acarrear cerca de 20 bilhões de dólares em três anos aos países da região, sempre e quando se mantenha a disciplina da reconversão econômica, se respeite o caráter bilateral dos acordos e se garanta a livre circulação de capitais e mercadorias, em benefício dos Estados Unidos.
  19. Em termos de soberania e de progresso material, os países da América Latina não parecem, assim, encontrar-se no limiar do século XXI. Veem antes erguer-se como ameaça a volta ao passado, o regresso ao século XIX e seu legado de humilhações, espoliação e injustiça. É possível que um ou dois pudessem escapar à sorte que pesa sobre os demais, integrando-se em posição mais confortável no sistema imperialista. Isso se pagaria, porém, com a superexploração e a miséria dos seus próprios trabalhadores e o esmagamento das esperanças da maioria dos povos da região. É difícil admitir que isto possa vir a ocorrer. Encontramo-nos hoje em uma fase difícil do processo latino-americano, quando, depois de duas décadas de violência estatal, apenas iniciamos a reconstrução de nossas organizações populares, das nossas forças de esquerda, dos nossos projetos de nação. Mas já é visível que isso caminha em toda a região, da Argentina ao México, do Peru ao Brasil e, sobretudo, na América Central. Não é provável que contemos de imediato com grandes iniciativas regionais, destinadas a defender nossa independência e assegurar nosso direito de construir a economia e a sociedade que nos convêm. Para isso, será preciso aguardar que essa reconstrução haja amadurecido um pouco mais e que seus resultados se façam presentes no cenário político. Mas podemos ter a certeza de que ela resgatará a ideia da América Latina, de sua unidade e de seu destino comum, e fará disso premissa necessária do projeto de sociedade justa, livre e soberana que as lutas do presente já começaram a forjar.

Ruy Mauro Marini

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